Uma jornada
até Plutão
Bem-sucedida na tarefa de observar o planeta anão,
a sonda New Horizons precisou resistir a ameaças de cancelamento da missão
SALVADOR NOGUEIRA | ED. 234 | AGOSTO 2015
A conclusão bem-sucedida da primeira missão a
Plutão foi amplamente noticiada, mas quase nada se disse do trabalho que deu
chegar até lá – tanto os desafios tecnológicos quanto os políticos. A sonda New
Horizons foi um dos projetos mais arrojados – e ameaçados – já levados a cabo
pela Nasa, a agência espacial norte-americana. A espiadela no planeta (ou
ex-planeta, conforme decisão da União Astronômica Internacional) sobre o qual
se sabia muito pouco já revelou traços de uma geografia e uma composição surpreendentes
e promete muito mais para os próximos tempos. Os resultados devem deixar
cientistas do mundo todo bastante ocupados por pelo menos uma década.
O desafio técnico, por si só, já foi
extraordinário. Partindo da Terra, a sonda precisava ser conduzida pelo espaço
de forma a atravessar um retângulo imaginário de 150 por 100 quilômetros (km)
localizado a quase 5 bilhões de km daqui. Numa comparação ilustrativa
apresentada por Glen Fountain, gerente de projeto da New Horizons, era como dar
uma tacada de golfe em Nova York e acertar o buraco em Los Angeles – na
primeira tentativa.
E o que aconteceria se a sonda não passasse por
essa área imaginária, em sua aproximação final a Plutão? Basicamente, ela
apontaria os instrumentos para o espaço vazio, uma vez que seus objetos de
estudo não estariam nos locais previstos. Toda a programação de observações
tinha de ser automatizada e armazenada nos computadores da sonda dias antes da
aproximação máxima, sem margem para correções de última hora.
Em certo sentido, a New Horizons reproduziu o
sucesso obtido pelas sondas Voyager 1 e 2, que nos anos 1970 e 1980 visitaram
os quatro maiores planetas do Sistema Solar – Júpiter, Saturno, Urano e Netuno
–, antes de deixar para sempre o Sistema Solar. Ocorre que o nível de precisão
requerido para uma missão a Plutão é maior. Não só ele estava mais distante que
qualquer dos alvos visitados pela Voyager como se move mais devagar, o que
torna mais difícil determinar com precisão a órbita em torno do Sol e, com
isso, sua posição a cada momento. O sistema plutoniano era tão desconhecido
que, quando a sonda começou a ser preparada, em 2001, só a maior de suas luas,
Caronte, era conhecida. Em 2005, por ocasião de observações de reconhecimento
feitas com o Telescópio Espacial Hubble, os astrônomos encontraram mais duas:
Nix e Hidra. E somente em 2011 e 2012, quase na reta de chegada da New
Horizons, as duas últimas conhecidas – Cérbero e Estige – foram achadas. É bem
possível que as imagens da New Horizons revelem mais objetos nas redondezas.
“Acredito que, com as imagens que ainda serão enviadas, há grandes chances de
se descobrir novos satélites”, diz a especialista em dinâmica orbital Silvia Giuliatti
Winter, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Guaratinguetá.
Modelos computacionais elaborados por ela ajudaram
a equipe da New Horizons a planejar a travessia mais segura da região durante o
sobrevoo, conforme a sonda se aproximou a apenas 12,5 mil km da superfície do
planeta anão (ver Pesquisa FAPESPnº 210).
Durante os anos que antecederam o lançamento,
contudo, a maior ameaça à missão foi bem mais prosaica: cortes no orçamento da
agência feitos pelo governo norte-americano. Em 2000, a Nasa decidiu cancelar o
projeto então em andamento, chamado Pluto Kuiper Express, conduzido pelo
Laboratório de Propulsão a Jato (JPL). Mas os congressistas americanos, que
historicamente se mobilizam em favor de expedições de ciência planetária, restituíram
a missão, e a Nasa lançou um anúncio de oportunidade solicitando ideias com
custo mais baixo. Daí nasceu a New Horizons, operada pelo Laboratório de Física
Aplicada (APL) da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Foi a chance
de Alan Stern, cientista-chefe da missão, pôr em prática planos que ele já elaborava
desde 1989.
Retrato oficial: área em forma de
coração ganhou o nome de Tombaugh Regio
Ainda que a etiqueta de preço tenha ficado mais
barata que a antiga Pluto Kuiper Express, foram gastos respeitáveis US$ 720
milhões. E mesmo depois da oficialização da missão, em 2001, ela passou por
apuros. Em 2002, a Casa Branca (então ocupada por George W. Bush) tentou mais
uma vez cancelar a missão. O Congresso, novamente, não deixou. Os resultados
científicos, e por que não dizer midiáticos, observados a partir de julho de
2014 foram fruto direto daquelas intervenções providenciais dos parlamentares
americanos.
A terceira zona
A exploração de Plutão marca a primeira visita de uma espaçonave a um território até então inexplorado do Sistema Solar. Nas regiões mais internas ficam os planetas rochosos, dos quais a Terra é o maior representante. Indo mais longe, há os planetas gigantes gasosos, dos quais Júpiter é o maior. E, cruzando a órbita de Netuno, temos um agregado com centenas de milhares de objetos, o chamado cinturão de Kuiper, do qual Plutão é o maior representante.
A exploração de Plutão marca a primeira visita de uma espaçonave a um território até então inexplorado do Sistema Solar. Nas regiões mais internas ficam os planetas rochosos, dos quais a Terra é o maior representante. Indo mais longe, há os planetas gigantes gasosos, dos quais Júpiter é o maior. E, cruzando a órbita de Netuno, temos um agregado com centenas de milhares de objetos, o chamado cinturão de Kuiper, do qual Plutão é o maior representante.
“A passagem da sonda é um marco no conhecimento da
chamada Terceira Zona do Sistema Solar”, diz Silvia. “Acredito que os dados
enviados pela sonda New Horizons nos trarão surpresas de Plutão e do próprio
cinturão de Kuiper. Provavelmente teremos de rever e adequar os modelos
dinâmicos de formação e evolução dos objetos do Sistema Solar.”
Num trabalho recente, publicado no início de 2015,
a pesquisadora da Unesp e seus colegas sugeriram que Plutão poderia ter se
formado numa região mais interna do Sistema Solar e só depois teria migrado
para o cinturão de Kuiper, sem que isso acarretasse a perda de seus satélites.
Há razões para desconfiar que o planeta anão não seja mesmo nativo do cinturão
de Kuiper, pois faltaria massa para produzir um objeto daqueles por ali, há 4,5
bilhões de anos. A questão ainda é controversa.
Controvérsias e surpresas é que não faltaram já nas
primeiras imagens colhidas durante a aproximação final. Elas revelaram um
cenário geológico bastante inesperado. Cadeias de montanhas de gelo de água e
terrenos geologicamente jovens, com menos de 100 milhões de anos, contrastam
com regiões mais escuras e cheias de crateras, representando terrenos intocados
por bilhões de anos. Tudo indica que ainda há processos movidos por calor
interno em Plutão, algo difícil de explicar pelos atuais modelos geofísicos. O
que se vê na superfície desse pequeno mundo com 2.372 km de diâmetro, que deveria
estar geologicamente morto, pode até sinalizar a existência de um oceano de
água líquida sob as profundezas de sua enorme crosta de gelo. “Parece que o
Sistema Solar resolveu guardar o melhor para o final”, brincou Alan Stern em
uma das muitas entrevistas coletivas concedidas para apresentar os primeiros
resultados científicos da New Horizons.
Quanto à superfície, ela parece conter gelos de
diversas substâncias – água no caso das montanhas, mas sobretudo metano e
outros compostos orgânicos, nitrogênio e monóxido de carbono. Aparentemente,
este último é um componente importante da área mais brilhante e lisa de Plutão,
batizada pela equipe da sonda de Tombaugh Regio, em homenagem ao descobridor do
planeta anão, o astrônomo americano Clyde Tombaugh.
Os pesquisadores também encontraram algumas
surpresas na atmosfera de Plutão. Alguns dos modelos atmosféricos sugerem que o
ar plutoniano poderia ser um fenômeno apenas temporário, que se congela e
colapsa quando se aproxima do afélio (ponto mais distante do Sol), voltando a
se vaporizar no periélio (ponto mais próximo do Sol). Verificar essa hipótese
foi um dos argumentos que salvaram a missão do cancelamento em 2002. Agora, 25
anos depois do último periélio, é um bom momento para analisar a atmosfera e
testar os modelos. Com os dados colhidos, ainda não foi possível determinar se
isso realmente ocorre. Mas já sabemos que ela é um pouco mais fria e menos
espessa do que se imaginava.
Um dos cientistas brasileiros mais interessados
nesses resultados em particular é Felipe Braga-Ribas, da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), em Curitiba. Ele estuda fenômenos
conhecidos como ocultações estelares – momentos em que objetos do cinturão de
Kuiper, como Plutão, passam à frente de uma estrela mais distante, com relação
ao campo de visada aqui na Terra. Ao observar o padrão de obscurecimento da
estrela conforme ela se esconde primeiro atrás da atmosfera, depois atrás da
superfície de Plutão, é possível inferir propriedades atmosféricas como pressão
ou temperatura.
“Os dados das ocultações estelares complementam
aqueles obtidos pelo instrumento Alice da New Horizons, de ultravioleta”, diz
Braga-Ribas. “O Alice consegue medir a atmosfera até uns 170 km de altitude, e
com ocultações conseguimos ir o resto do caminho, até próximo à superfície.”
O brasileiro espera que a incrível fonte de dados
que será a New Horizons servirá para decifrar o estado atual da atmosfera de
Plutão. A partir daí, com novas ocultações estelares, será possível investigar
como ela evolui com o passar do tempo, para então verificar processos como o
hipotético colapso temporário da atmosfera.
Caronte, a maior das luas, também se revelou
especialmente intrigante. A superfície não é tão renovada quanto a de Plutão,
mas ainda assim é mais jovem do que o esperado, e uma região escura no polo é
um mistério completo para os cientistas.
futuro
O nível de empolgação dos cientistas com os dados produzidos pela sonda lembra o de uma torcida em final de campeonato. Literalmente. “Na semana do sobrevoo, após a última conferência da Nasa, eu e o pessoal da equipe de que faço parte fomos com todos os membros do time da New Horizons assistir a um jogo de beisebol do Nationals, em Washington”, conta André Amarante, pesquisador do grupo da Unesp de Guaratinguetá e que no momento faz uma parte do doutorado na Universidade de Maryland, em Laurel (mesma cidade que sedia o APL).
O nível de empolgação dos cientistas com os dados produzidos pela sonda lembra o de uma torcida em final de campeonato. Literalmente. “Na semana do sobrevoo, após a última conferência da Nasa, eu e o pessoal da equipe de que faço parte fomos com todos os membros do time da New Horizons assistir a um jogo de beisebol do Nationals, em Washington”, conta André Amarante, pesquisador do grupo da Unesp de Guaratinguetá e que no momento faz uma parte do doutorado na Universidade de Maryland, em Laurel (mesma cidade que sedia o APL).
… batizado por sugestão de Venetia
Burney, 11 anos, transmitida por telegrama do astrônomo H. H. Turner
“O jogo teve de ser paralisado algumas vezes por
falta de energia, e enquanto isso o Alan Stern começou a mostrar para as
pessoas imagens de Plutão, diretamente do seu celular. Foi demais! Agora
sabemos onde chega o sinal da New Horizons”, brinca Amarante.
O interesse específico de Amarante é encontrar
objetos em regiões estáveis ao redor das luas conhecidas. “Nas simulações
computacionais que fizemos, descobrimos que existe uma possibilidade real de
que em algumas dessas regiões estáveis possa existir uma população de objetos
denominados troianos, que compartilham a mesma órbita de uma dada lua”, diz.
“Por isso estamos bastante ansiosos pelos dados da New Horizons.”
A ansiedade ainda deve durar por um bom tempo.
Transmitindo dos confins do Sistema Solar, a taxa de envio de dados é inferior
à das antigas conexões de internet discada. Até baixar completamente os 5 gigabytes
produzidos durante a passagem por Plutão, será preciso esperar 16 meses. A
julgar pelo que chegou até agora, vai valer a pena.
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