A nova onda
dos qubits
Sistemas à temperatura ambiente podem ter uma
porção quântica útil para a computação
MARCOS PIVETTA | ED. 193 | MARÇO 2012
Modelo
computacional de ondas quânticas: a dualidade partícula-onda da matéria gera os
ganhos potenciais do mundo quântico
Por que um computador quântico poderia, em tese, realizar em minutos
cálculos que nem em bilhões de anos os mais potentes supercomputadores
conseguiriam fazer? Até 2007 parecia não haver outra resposta possível a essa
pergunta a não ser atribuir as vantagens de uma máquina impulsionada por
qubits, os bits quânticos, ao emaranhamento ou entrelaçamento quântico,
misterioso e estranho fenômeno que aumentaria exponencialmente a capacidade de
processamento de dados. Partículas, átomos ou moléculas descritos como
emaranhados se encontram tão fortemente ligados entre si — os físicos usam o termo
correlacionados — que são capazes de trocar informação independentemente de
estarem lado a lado ou a milhares de quilômetros de distância. Apesar de
poderoso, o entrelaçamento é também frágil e apenas se mantém em situações
especiais, em sistemas extremamente controlados, que não interagem com o
ambiente externo.
Nos últimos cinco anos, um novo conceito para aferir correlações não
previstas pelas leis da física clássica, a discórdia quântica , ganhou terreno
e hoje fornece indícios de que talvez seja possível construir dispositivos
quânticos a partir de componentes sem nenhum traço de emaranhamento. E não é só
isso. Átomos e partículas com certo nível de discórdia podem conservar suas
propriedades quânticas à temperatura ambiente, em sistemas macroscópicos, e em
situações em que exista ruído, aqui entendido como a influência do meio externo
no sistema.
Derivada de um conceito similar da teoria da informação, a discórdia é
uma medida estatística usada para determinar se existe algo de quântico num
sistema físico, como um conjunto de elétrons ou moléculas. Os cientistas
realizam uma série de medidas para descobrir se há propriedades tipicamente
quânticas,
como a chamada dualidade partícula-
-onda, capazes de estabelecer um canal de comunicação entre alguns dos
componentes do sistema. Essa ligação pode ser o próprio emaranhamento, a forma
de conexão quântica mais forte que se conhece (embora de difícil manutenção),
ou outros tipos de correlações quânticas mais fracas. A natureza exata dessas
correlações mais tênues ainda não é conhecida pelos pesquisadores, mas há
evidências de que elas podem ser mais duradouras que o emaranhamento e
suficientes para transmitir informação.
“Antes do conceito de discórdia, muitos pesquisadores pensavam que
sistemas sem emaranhamento não podiam ser quânticos”, diz Roberto Serra, da
Universidade Federal do ABC (UFABC), um dos físicos brasileiros que mais têm se
dedicado ao tema dentro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de
Informação Quântica (INCT-IQ), iniciativa mantida conjuntamente pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela FAPESP. “Mas
estamos mostrando que sistemas com algum tipo de discórdia (e sem
emaranhamento) podem ser robustos e servir de base para aplicações em metrologia
e computação.”
A discórdia quântica engloba, portanto, toda e qualquer correlação que
está em desacordo (daí o nome do conceito) com as leis da física newtoniana,
visíveis em nosso dia a dia. A quantidade de discórdia de um sistema é dado por
uma equação matemática. “Se a medida da discórdia for diferente de zero, o
sistema tem algo de quântico”, explica o físico Felipe Fanchini, da
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), que tem publicado trabalhos teóricos
sobre o novo conceito.
Com essa noção de discórdia na cabeça, físicos de todo o mundo, com
destaque para alguns trabalhos recentes de pesquisadores brasileiros, estão
encontrando algo de quântico em sistemas antes vistos como estritamente
clássicos, ou seja, que aparentemente eram regidos somente pela física
newtoniana. Uma equipe de cientistas do INCT-IQ publicou dois artigos
praticamente em seguida no segundo semestre do ano passado na revistaPhysical
Review Letters (PRL) com resultados de experimentos que exploram esse
novo conceito.
Num artigo de 12 de agosto, Serra e colaboradores do Instituto de Física
de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), do Centro Brasileiro de
Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, e da Embrapa dão conta de que
mediram pela primeira vez de forma direta a discórdia num sistema quântico a
cerca de 26 graus Celsius criado com o emprego da técnica de ressonância
magnética nuclear. Trata-se de um embrião do que um dia pode vir a ser um
computador quântico líquido.
No laboratório do CBPF os pesquisadores codificaram dois qubits em
moléculas de clorofórmio (CHCl3), um composto incolor, denso e adocicado usado
hoje como solvente e matéria-prima para a produção de precursores de polímeros
como o teflon. A rigor codificaram um bit quântico no spin do
núcleo do átomo de hidrogênio e outro no de carbono ao aplicarem um campo
magnético de 12 teslas, milhões de vezes maior do que o da Terra, no sistema.
O spin é uma propriedade fundamental das partículas
elementares, como os elétrons e os fótons, e dos núcleos dos átomos e costuma
ser representada por uma seta para cima ou para baixo. “Usamos pulsos de campo
magnético para manipular o spin do núcleo”, afirma o físico
Diogo de Oliveira Soares Pinto, do grupo dos professores Tito Bonagamba e
Eduardo Azevedo, da USP de São Carlos, que participou do experimento. “Nas
condições em que fizemos o trabalho é impossível haver emaranhamento.”
Em 30 de setembro, um segundo artigo do mesmo grupo na PRL apresentou
outro resultado interessante, derivado novamente de observações feitas no
sistema de dois qubits criado nas moléculas de clorofórmio. Os pesquisadores
mediram mudanças súbitas no comportamento da discórdia quântica em razão do
contato com o meio ambiente. Viram como os efeitos quânticos do sistema iam
sumindo devido a flutuações e ruídos do ambiente térmico. Depois de um tempo,
as interações podiam desestruturar os dois qubits, causando uma perda
progressiva de coerência do sistema.
No experimento, os físicos perceberam que a discórdia parece ser
bastante resistente a ambientes que causam perturbações no sistema. Nos cerca
de cinco mililitros de clorofórmio usados no experimento, apenas uma em cada 1
milhão de moléculas do composto carregava os qubits codificados em seus átomos.
Apesar de “diluído” num sistema que é quase totalmente clássico, o caráter
quântico da amostra de clorofórmio se preserva e pode se útil para o
desenvolvimento de aplicações. “Qualquer processo de comunicação precisa ter o
controle sobre as formas de correlação de um sistema”, afirma Ivan Oliveira, do
CBPF, um dos coautores dos dois estudos citados. “Precisamos separar a parte
clássica e a quântica da informação.”
Mais recentemente ainda, em 10 de fevereiro deste ano, os brasileiros
publicaram um terceiro artigo sobre discórdia na PRL. Dessa vez
eles trabalharam com um sistema óptico, para o qual criaram uma forma simples e
direta de verificar se há ou não discórdia em fótons, partículas de luz. Foram
codificados dois qubits usando uma propriedade dos fótons, a sua polarização,
se horizontal ou vertical, e desenvolvido um esquema de registrar, como uma só
medida, se há ou não correlações quânticas no sistema, um estratagema
denominado testemunha da discórdia. Normalmente é preciso fatiar o sistema em
várias partes, como se faz numa tomografia para fins médicos, e realizar ao
menos quatro medidas para descobrir se há uma conexão quântica entre os fótons.
“Agora, com apenas uma medida,
conseguimos dizer se poderia haver ou não discórdia”, explica Stephen Walborn,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coautor do estudo.
Um conceito ignorado por anos
A ideia da discórdia quântica foi inicialmente proposta em 2001 por dois grupos de fisicos que desenvolveram o conceito de forma independente, o chefiado por Wojciech H. Zurek, do Laboratório Nacional de Los Alamos, nos Estados Unidos, e o liderado por Vlatko Vedral, da Universidade de Oxford, na Inglaterra. A proposta não causou muito impacto na comunidade científica em seus primeiros anos de vida. Era uma ideia bastante abstrata sobre um campo de estudo cujo centro principal de interesse girava historicamente em torno do emaranhamento, misterioso fenômeno que Albert Einstein descrevera como tendo uma “ação fantasmagórica a distância”.
Quando em 2007 surgiram os primeiros trabalhos experimentais mostrando
que sistemas à temperatura ambiente com discórdia (e sem emaranhamento) podiam
transmitir informação por meio de bits quânticos, boa parte dos físicos foi
reler os trabalhos de seis anos atrás de Zurek e Vedral. Houve um boom de
interesse pelo tema. “A discórdia quântica deu uma nova luz a questões que
estavam sendo debatidas há anos”, diz o físico Amir Caldeira, da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do INCT-IQ e autor de trabalhos
sobre discórdia.
Segundo Vlatko Vedral, nem todo sistema que apresenta discórdia quântica
pode ser manipulado para gerar aplicações em computação ou outras áreas.
“Precisamos ser cuidadosos ao escolher os sistemas com que vamos trabalhar.
Essa questão ainda está em aberto”, afirma o físico de Oxford. “Para
entendermos a diferença que há entre o mundo clássico e o quântico, para
entendermos por que um gato não pode estar em dois lugares, mas os átomos
podem, acho que temos de ser capazes de discriminar os estados que têm discórdia
e os que não têm.” Por ora, os físicos sabem apenas que certos sistemas com
discórdia (e sem entrelaçamento), como as moléculas de clorofórmio ou os
fótons, podem processar os tão desejados bits quânticos.
O qubit é o análogo quântico do bit clássico, definido como a menor
unidade em que a informação pode ser codificada, armazenada e transmitida nos
computadores atuais e nos sistemas de telecomunicações, como fibras ópticas ou
redes sem fio. Há, no entanto, diferenças significativas entre os dois conceitos.
Num dado momento, um bit clássico, também denominado dígito binário, só pode se
encontrar em apenas um de dois valores ou estados possíveis: 0 ou 1, por
exemplo. Nos computadores de hoje em dia o 0 é representado pela interrupção da
voltagem num circuito (estadooff) e o 1 pela liberação da corrente
(estado on). Um qubit é mais do que isso. Ele pode,
simultaneamente, representar os valores equivalentes a 0 e 1. Pode estar numa
superposição de estados, uma estranha propriedade quântica que potencializa a
realização de cálculos em paralelo. “Os qubits aumentam de maneira exponencial
a capacidade de computação”, comenta Roberto Serra. “De forma simplificada,
podemos dizer que dois qubits equivalem a 4 bits, 3 qubits a 8 bits, 4 quibits
a 16 bits e assim por diante.”
A superposição de estados é uma capacidade típica dos sistemas quânticos
(sejam eles formados por átomos, elétrons, fótons ou moléculas) de se comportar
concomitantemente como partícula e onda. É a tal da dualidade partícula-onda. A
situação se torna menos surreal quando se toma como exemplo a onda criada por
uma pedra arremessada num lago. Ela causa oscilações na superfície da água na
forma de círculos concêntricos que podem, ao mesmo tempo, atravessar duas
pontes vizinhas na beira do lago. Nesse caso, se uma ponte for a representação
do número 0 e outra do 1, parte da onda é 0 e parte é 1. A onda é 0 e 1 ao
mesmo tempo.
Mas um computador quântico que desse duas respostas para um problema
seria de pouca valia. Afinal, apenas uma delas é a certa. Aí entra em ação um
segundo fenômeno quântico, a interferência de ondas. Retomando o exemplo do
lago, depois de atravessar as duas pontes, a onda 1 e a onda 0 se reencontram.
Essa interação pode ser destrutiva, as ondas se cancelam e o resultado final é
0. Ou construtiva, as ondas se somam e a resposta é 1. Os chamados algoritmos
quânticos são instruções matemáticas, espécie de programas, que aumentam a
probabilidade da superposição de estados e da interação de ondas de levarem à
resposta certa ao final do processamento de dados. Estranho? Sim. Bem-vindo ao
mundo quântico.
O invólucro negro
que protege o computador quântico D-Wave One: máquina tem o dobro da altura de
um homem, ocupa área de 10 metros quadrados e funciona perto da temperatura do
zero absoluto
A caixa preta de US$ 10 milhões
Do tamanho de uma sala, máquina com
128 qubits emaranhados se intitula o primeiro computador quântico comercial
Quando se contar a história da computação quântica, o dia 25 de maio de
2011 provavelmente será lembrado. Nesta data, a companhia canadense D-Wave
Systems anunciou, em meio a um certo ceticismo da comunidade acadêmica, a venda
do autointitulado primeiro computador quântico produzido para fins comerciais.
Em vez de chip de silício como os micros atuais, o D-Wave One,
nome da máquina, faz cálculos explorando as propriedades quânticas de um
processador com 128 qubits, implementados por um conjunto de anéis
supercondutores de corrente mantidos a 30 milikelvin, temperatura perto do zero
absoluto. A primeira unidade do computador custou supostos US$ 10 milhões à
empresa aeronáutica americana Lockheed Martin, que o instalou no final do ano
passado no centro de computação quântica da Universidade da Califórnia do Sul
(USC, na sigla em inglês), no campus de Marina Del Rey.
O D-Wave One é, literalmente, uma grande caixa preta. O processador, que
mede uns poucos centímetros, fica protegido das interferências do meio externo
por estar abrigado em um compartimento fechado com o dobro da altura de um
homem e 10 metros quadrados de área. Dentro desse invólucro com ares de um cubo
irregular há sistemas de resfriamento e proteção contra a influência de campos
magnéticos externos, que são os responsáveis por garantir as melhores condições
para o processamento dos qubits.
“O chip quântico é composto por 128 anéis
supercondutores iguais, cada um com o tamanho de 100 micrômetros (um centésimo
de milímetro)”, diz o físico teórico Frederico Brito, da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE), que trabalhou na empresa D-Wave entre maio de 2008 e
julho de 2009. Quando gira nos anéis no sentido anti-horário, a corrente
representa um spin para cima (ou o 0 da computação clássica). Quando corre no
outro sentido, faz as vezes do spin para baixo (ou o 1). Um
dispositivo presente em cada anel e denominado junção Josephson gera efeitos
quânticos, como tunelamento e interferência de ondas, que potencializam a
capacidade teórica da máquina de resolver problemas.
O chip do
computador quântico
Para alguns físicos, o D-Wave One é também uma caixa preta no sentido
metafórico. Pouca gente sabe como a máquina funciona e se há algo de quântico
realmente nela. Para tirar dúvidas e vencer resistências da comunidade
acadêmica, a empresa canadense publicou um artigo em 12 de maio do ano passado,
menos de duas semanas antes da divulgação da venda de seu primeiro computador,
na prestigiada revista científica britânicaNature. No trabalho, os
cientistas da companhia dão detalhes sobre a técnica usada para gerar os 128
qubits. A máquina explora a chamada computação quântica adiabática.
De forma simplificada, esse tipo de computação consiste em fazer um
sistema trabalhar em seu menor nível de energia possível, no chamado estado
fundamental, geralmente próximo da temperatura do zero absoluto. Em seguida são
promovidas mudanças tão lentamente no sistema que essas alterações são capazes
de manter as propriedades quânticas do dispositivo sem fazê-lo funcionar no
nível seguinte de energia. No caso do computador da D-Wave as alterações
consistem em fazer a corrente mudar de sentido, do horário para o anti-horário,
ou vice-versa.
Cerca de 85% dos qubits da máquina já se encontram operacionais, segundo
Daniel Lidar, diretor do centro de computação quântica da USC. “Ainda não
sabemos o quão potente é o processador”, afirma Lidar. “Pretendemos estudá-lo
com muita atenção.” O D-Wave One foi desenvolvido para procurar as melhores
soluções para certos tipos de problema, como o reconhecimento de imagens e o
enovelamento de proteínas.
Os Projetos
1. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica (nº 2008/57856-6); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Amir Caldeira – Unicamp; Investimento R$ 1.384.811,24 (FAPESP) e R$ 5.700.000,00 (CNPq) - 2. Informação quântica e decoerência (nº 2005/04471-1); Modalidade Programa Jovem Pesquisador; Coordenador Roberto Serra – UFABC; Investimento R$ 68.321,95 (FAPESP)
1. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica (nº 2008/57856-6); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Amir Caldeira – Unicamp; Investimento R$ 1.384.811,24 (FAPESP) e R$ 5.700.000,00 (CNPq) - 2. Informação quântica e decoerência (nº 2005/04471-1); Modalidade Programa Jovem Pesquisador; Coordenador Roberto Serra – UFABC; Investimento R$ 68.321,95 (FAPESP)