Rota alternativa
Descoberta de sistema com duas estrelas de alta massa em
processo de fusão indica um caminho evolutivo diferente para esses astros
SALVADOR NOGUEIRA | ED. 236 | OUTUBRO 2015
A
descoberta de um objeto astrofísico dos mais raros e incomuns no Cosmos, feita
por um grupo internacional de pesquisadores com participação de brasileiros,
pode levar a um entendimento mais refinado de como evoluem as estrelas de alta
massa, muito maiores e mais luminosas que o Sol. O objeto é conhecido pela
sigla VFTS 352 e se localiza na nebulosa de Tarântula, também conhecida como 30
Doradus, que faz parte da Grande Nuvem de Magalhães, uma das galáxias-satélite
da Via Láctea, a cerca de 160 mil anos-luz de distância da Terra. Ele é
composto por duas estrelas azuis do tipo O, com uma massa combinada 58 vezes
maior que a do Sol, que estão numa fase chamada de “overcontato”. A expressão
significa que uma estrela está basicamente colada na outra, compartilhando seu
envelope, sua região mais externa. Segundo os astrofísicos, essa situação
indica que as estrelas devem estar se fundindo.
“Conhecemos
apenas outros três sistemas com essa configuração”, explica Leonardo Almeida,
que faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Astronomia, Geofísica e
Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) e é o primeiro
autor do artigo que reporta a descoberta, a ser publicado neste mês no
periódico Astrophysical Journal. “O VFTS 352 é o mais interessante
e importante, pois é o de maior massa e mais quente.” As estrelas do sistema
binário já estão compartilhando cerca de 30% do seu envelope. Com o passar do
tempo, provavelmente se tornarão uma estrela só. Mas isso não vai acontecer tão
cedo. “Embora o sistema deva evoluir muito rápido para o tempo das estrelas,
não veremos nada radical nos próximos séculos”, afirma o astrofísico Augusto
Damineli, também da USP e coautor do trabalho.
O
sistema atrai interesse por permitir um estudo prático de um caminho evolutivo
diferente para estrelas de alta massa. Até recentemente se imaginava que elas
se formassem isoladamente, e não também em duplas como parece ser o caso do
sistema VFTS 352. “A teoria de evolução estelar foi feita em cima de estrelas
menos massivas e isoladas”, diz Cássio Leandro Barbosa, astrônomo especialista
em estrelas de alta massa que não participou do estudo. “Nesse caso, temos uma
violação dupla dessas condições, de modo que elas devem ser diferentes do que prevê
a teoria.” As primeiras medições indicam que as estrelas do sistema são mais
quentes do que advoga o modelo tradicional. Sua temperatura ultrapassa os
previstos 40 mil Kelvin (K). “Descobertas recentes como essa mostram que pelo
menos 70% das estrelas do tipo O interagem em sistemas duplos”, diz Damineli.
Um aspecto importante é que estrelas desse tipo são as principais fontes de
oxigênio existentes no Universo.
As
estrelas são classificadas de acordo com a temperatura. Esta, por sua vez, pode
ser associada à massa, ao menos quando as estrelas estão na chamada sequência
principal e usam hidrogênio para alimentar as reações nucleares que as fazem
brilhar. As do tipo O são as maiores de todas, seguidas pelas dos tipos B, A,
F, G, K e M. O Sol, de porte modesto, é do tipo G.
A
descoberta do sistema binário foi feita por dois projetos paralelos, o
VLT-Flames Tarantula Survey e o The Tarantula Massive Binary Monitoring. Ambos
usaram o Very Large Telescope, do Observatório Europeu do Sul (ESO), em suas
observações. O achado foi considerado tão importante que motivou até
observações feitas com o disputado Telescópio Espacial Hubble.
Fábrica de
elementos
O Big Bang, evento que marca o início do Universo, produziu em quantidades significativas apenas dois elementos: hidrogênio e hélio. Teria sido desses átomos primordiais que surgiram as primeiras estrelas, agregadas a partir de nuvens gasosas pela força gravitacional. Conforme a massa começa a se contrair pela gravidade no centro da estrela, a pressão e a temperatura internas se tornam tão grandes que os núcleos de hidrogênio começam a se fundir, formando hélio. É essa a reação que produz a energia do astro. Contudo, quando o hidrogênio no centro da estrela se esgota, o processo recomeça com elementos cada vez mais pesados. Primeiro hélio, depois oxigênio e então ladeira acima na tabela periódica, até chegar ao ferro.
Quanto
mais massa tem uma estrela, maiores a pressão e a temperatura internas, e maior
a capacidade de produzir elementos pesados. Ao fim de sua vida, quando a fusão
nuclear já não é mais possível, as estrelas de tipo O desaparecem em violentas
explosões conhecidas como supernovas. São esses eventos que produzem todos os
elementos acima do ferro. Graças a esse ciclo promovido pelas estrelas há mais
de 13 bilhões de anos, surgiram os átomos que compõem a Terra e seus
habitantes.
Os
detalhes das proporções de produção desses elementos, no entanto, ainda estão
longe de serem resolvidos. “Os astrônomos costumam fazer a contabilidade da
produção dos elementos químicos admitindo que as estrelas são isoladas”, afirma
Damineli. “Descobertas como a VFTS 352 exigem que se refaçam as contas, levando
em consideração a elevada duplicidade das estrelas de alta massa.”
Em
seu estágio final, o sistema VFTS 352 pode produzir o que os astrônomos
conhecem como uma explosão de raios gama de longa duração. “Esses objetos,
quando explodem a 12 bilhões de anos-luz de nós, chegam a interromper as
telecomunicações, se seu eixo de rotação está na nossa direção”, diz Damineli.
“Se morrer dessa forma, por estar a menos de 200 mil anos-luz de nós, mais que
um espetáculo, esse sistema será um potencial problema para possíveis planetas
habitados que ficarem na direção do feixe de raios gama.”
Apontados
para a Terra, os raios gama não chegariam a atravessar a atmosfera, mas
poderiam detonar a camada de ozônio e, assim, expor a vida aos nocivos raios
ultravioleta solares. Isso mostra como certos eventos astrofísicos podem ser
hostis à vida, mesmo a distâncias gigantescas. Contudo, Leonardo Almeida lembra
que esse evento só acontecerá daqui a milhões de anos: “E a probabilidade de o
feixe de raios gama estar na nossa direção é muito, muito pequena”.
Projeto
Distâncias precisas de aglomerados jovens através de binárias eclipsantes massivas (nº 2012/09716-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsávelAugusto Damineli (IAG-USP); Beneficiário Leonardo Almeida; Investimento R$ 239.299,28 e US$ 44.400,05. Artigo científico ALMEIDA, L. A. et al. Discovery of the massive overcontact binary VFTS 352: Evidence for enhanced internal mixing. Astrophysical Journal. v. 812, n. 2. 20 out 2015.
Distâncias precisas de aglomerados jovens através de binárias eclipsantes massivas (nº 2012/09716-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsávelAugusto Damineli (IAG-USP); Beneficiário Leonardo Almeida; Investimento R$ 239.299,28 e US$ 44.400,05. Artigo científico ALMEIDA, L. A. et al. Discovery of the massive overcontact binary VFTS 352: Evidence for enhanced internal mixing. Astrophysical Journal. v. 812, n. 2. 20 out 2015.